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1.6.02

Balanço do Festival Internacional de Londrina

Reportagem de Beth Néspoli - Agencia Estado - 27/05/02.

Atriz espanhola é destaque em Londrina
Solo de Marta Carrasco, também coreógrafa, sobressaiu no festival de teatro marcado pela diversidade de linguagens

Londrina - A diversidade cultural foi a marca da 35.ª edição do Festival Internacional de Londrina (Filo), que terminou no fim de semana. Na programação, desde a mais avançada pesquisa de linguagem, como no caso dos três espetáculos trazidos pela atriz e coreógrafa espanhola Marta Carrasco, até a expressão mais visceral e contundente de um grupo de detentas do 2.º Distrito Policial de Londrina. Ao longo de 30 dias, foram mais de 104 apresentações de espetáculos do Brasil e de outros 11 países da América e da Europa.

Uma digital e um olho humano foram os signos escolhidos para o cartaz do Filo 2002. Sabe-se que hoje a íris serve para identificar um homem tanto quanto sua digital. O conceito do olhar do artista sobre o mundo como símbolo de identidade cultural orientou a programação do festival, perpassou palestras e outras manifestações, como exposições de fotos feitas por garotos da periferia, e, como desejado, acabou por interferir no olhar do espectador. Desde sua 30.ª edição, o Filo ambiciona tornar-se mais que mera mostra de espetáculos avaliados por critérios x ou y de evolução de linguagem cênica. Ambiciona ser painel de expressões de diferentes culturas - cultura entendida no sentido mais amplo, como escala de valores, modos de vestir, padrões de comportamento e pensamento - e também estímulo a expressão culltural de grupos comumente sem acesso a esse tipo de manifestação.

Dentro do contexto do festival, a cena final do espetáculo das presidiárias (uma mulher alta e bonita que, com gestos lentos e teatrais, acaricia sua barriga de grávida, ao som da canção francesa Ne me Quitte Pas) transforma-se num imagem tão expressiva quanto a mais requintada criação da espanhola Marta Carrasco, um dos destaques da programação internacional.

"Não gosto do rótulo teatro-dança, mas mesmo na Europa as pessoas têm dificuldade para enquadrar esteticamente o tipo de arte que faço", comentou Marta Carrasco em entrevista coletiva em Londrina, após apresentação de Aiguardent, um dos três espetáculos apresentados no festival. Aiguardentconquista pela intensidade já no primeiro movimento, no qual Marta literalmente dança com uma cadeira e uma mesa que têm rodinhas nos pés. Sobre a mesa, um copo e uma tentadora garrafa de aguardente, à qual ela tenta resistir. Ainda em cena, um baú, um colchão de casal na posição vertical, várias garrafas de aguardente e um vestido de noiva pendurado num cabide. "Esse solo, à primeira vista, parece ser sobre uma alcoólatra. Mas na verdade é sobre a solidão. Um mulher solitária tem de aferrar-se a alguma coisa. Ela aferra-se à bebida."

Várias facetas dessa mulher são exploradas em diferentes momentos do espetáculo. A inocência da menina, o despertar da sexualidade na adolescência e o domínio pleno da sedução já na maturidade. Que aparecem não necessariamente nessa ordem. Cada mudança de roupa é feita diante de um espelho imaginário, cuja moldura está de frente para a platéia, que pode assim acompanhar a transformação da personagem a partir do figurino. Num dado momento, Marta veste uma roupa que permite que ela "literalmente" suba pelas paredes, "grudando" no colchão colocado na vertical, onde faz uma "coreografia" da insônia. No momento seguinte, ela se embebada com dezenas de garrafas de aguardente. Valorizado por uma iluminação belíssima, o líquido retido na mesa permite ainda uma deslumbrante "coreografia de desespero".

Ressalte-se que nenhum efeito em Aiguardent é gratuito. Nenhum objeto de cena apenas decorativo. Marta consegue deixar o público siderado com a intensidade de emoções que traz à cena. O único elemento cênico não utilizado é justamente o vestido de noiva. Ali, pendurado no palco, torna-se um signo pleno de significados, a presença de uma ou muitas ausências.

Cuba - Se comparado de forma fria aos espetáculos de Marta, a concepção do diretor cubano Pepe Santos para Severa Vigilância (texto de Jean Genet que flagra três homens e um jogo de sedução e poder dentro de uma cela de presídio), a interpretação dos atores - seja na caracterização do homossexual ou do xerife da cela - fica quase ingênua. No entanto, no Filo a arte é vista como manifestação de uma cultura, o que aguça e amplia a percepção do espectador. Isso permite perceber que há em Severa Vigilância uma grande ousadia na forma como os atores se tocam em cena, na abordagem corajosa de um tema que ainda representa forte tabu na machista sociedade cubana. Sem contar que levar Jean Genet ao palco tem um significado em Cuba todo especial. Atualmente os teatros estão lotados em Cuba. E o público interessa-se especialmente por peças como As Três Irmãs, de Chekhov, ou Entre Quatro Paredes, de Sartre, assim como todas as que, metaforicamente ou não, abordam o tema da prisão e do desejo de transformação, argumentou o diretor.

Um clima de absurdo (relações aparentemente cotidianas vistas sob ângulos bizarros e comportamentos que repentinamente escapam do "controle da normalidade") tornou-se a marca, o elo comum entre três diferentes espetáculos trazidos pelos argentinos. Embora tenham sido escritos pouco antes do acirramento da crise no País, refletem o olhar dos portenhos sobre seu país. Na comédia La Escala Humana, uma mãe de família assassina uma vizinha na feira, por um motivo banal. Ninguém a denuncia, seus filhos enterram o corpo no jardim, mas começam a ter muito trabalho, porque ela torna-se uma serial killer. O espetáculo foi escrito e dirigido a seis mãos por jovens artistas argentinos - Javier Dualte, Rafael Spregelburd e Alejandro Tantanian. "Atualmente seria até patético tentar levar a política ao palco de forma direta. A realidade muda a cada dia."

Sobre uma estranha família que vive num banheiro, basicamente dentro de uma banheira, gira o tema da peça 1.500 Metros sobre El Nivel de Jack, do autor e diretor Federico Léon. E estranhas fantasias eróticas arrancaram gargalhadas em Hermosura, uma espécie de show de variedades portenho criado pela companhia El Descueve.

A sofisticação técnica e a beleza das imagens chamaram atenção no espetáculo Mémoire Vive, do grupo canadense Les Deux Mondes. Uma menina morta resgata sua infância antes de fazer "a passagem" para o outro mundo. Nessa espécie de Valsa n.º 6 canadense, sobressai o requinte técnico. Câmeras que entram no palco acopladas a brinquedos da infância, como um trenzinho cujos vagões são feitos de miniaturas de eletrodomésticos, teatro de sombras, várias técnicas mesclam-se na criação de imagens que deslubram o olhar a cada novo movimento. No texto, delicado e poético, uma morta alerta-nos sobre o valor da vida. Guerras, chacinas na periferia, fome, seca - certamente nenhum desses problemas afeta a sociedade canadense. Mas são preocupantes as estatísticas de suicídio. Um grupo talentoso na utilização dos recursos técnicos hoje disponíveis, que concentra sua arte na criação de belas imagens para falar sobre a importância de estar vivo.

"Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida podia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita, é bonita, é bonita e é bonita", cantou Beth Carvalho no palco do Cabaré, o espaço cenográfico que abrigou os shows musicais que na última semana encerravam, a cada noite, a programação do Filo. Outro jeito de dizer o mesmo que a trupe canadense Le Deux Mondes.

Pode parecer meio estranho que um festival de artes cênicas abrigue shows de música. Mas o Cabaré do Filo funciona como ponto de encontro de todas a trupes e todos os públicos do festival no fim da noite. Mais que isso, atrai um público variado que acaba conhecendo artistas pelos quais jamais seriam atraídos num show convencional. O Cabaré, este ano, abrigou músicos diferentes entre si como o DJ Thaíde, o grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado, o cantor Jorge Benjor e Beth Carvalho, entre outros.

Debates- A diversidade cultural que tomou conta dos palcos do teatro ou do Cabaré foi tema de uma série de debates. Presidida por Nitis Jacon, a diretora e fundadora do Filo, a Rede Cultural do Mercosul promoveu em Londrina, durante cinco dias, um Fórum de discussão cujo tema foi O Lugar Público da Cultura. Dois palestrantes destacaram-se na programação do Fórum: o mexicano Rafael Segovia, representante da Rede Internacional pela Diversidade Cultural (INDC, www.incd.net) e o embaixador brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães.

Depois de dar uma definição ampliada de cultura - na qual a arte encaixa-se como uma de suas manifestações - Segovia fez uma interessante analogia entre cultura e ecologia. "Hoje sabemos que cada espécie extinta significa um grave desequilíbrio no ecossistema. Hoje sabemos que os recursos naturais, com água, não são infindáveis. Mas ainda é frágil a consciência das graves conseqüências do desaparecimento de um idioma ou da extinção de uma manifestação cultural." Foram quase três horas de palestras na qual Segovia destacou a cultura como motor que impulsiona todas as outras atividades humanas, principalmente política e economia. "Temos de lutar para termos representantes da área cultural em organismos como OEA. A cultura tem de interferir em acordos econômicos e comerciais." A palestra de Segovia foi complementada de forma brilhante pelo embaixador Guimarães, que falou sobre Hegemonia Cultural. Tomando como base principalmente a imposição da cultura americana através da exportação maciça da indústria audiovisual - cinema, TV, vídeo - chamou atenção para a "colonização do olhar".

Colonização claramente percebida na natural tendência dos espectadores a ver, na mostra, com "melhores olhos" a presença de espetáculos europeus do que latino-americanos. "O olhar colonizado afeta a auto-estima, volta-se contra nós mesmos", alertou o embaixador. Lição reforçada pela incotestável qualidade dos espetáculos uruguaios, chilenos e argentinos no festival.



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