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20.6.02

WILLIAM SHAKESPEARE, Barbara lhe adora. PETER BROOK, Barbara não lhe adora.


Um Shakespeare com assinatura Peter Brook
Barbara Heliodora

Se em “Romeu e Julieta” se faz a pergunta “o que há em um nome?”, o espetáculo que o grupo do CICT Théâtre des Bouffes du Nord, sediado em Paris, apresenta em rápida temporada no Rio — de hoje a sábado, no Teatro Carlos Gomes, com ingressos já esgotados — deixa bem claro que pode haver muita coisa implícita em uma simples mudança de nome: William Shakespeare escreveu “A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”; o que nos visita agora é “A tragédia de Hamlet”, uma adaptação de Peter Brook, provavelmente o nome de maior prestígio internacional no campo da direção, que trabalhou com o texto traduzido para o francês por Jean-Claude Carrière e Marie-Hélene Estienne (também assistente e colaboradora na direção). Cada vez mais adepto do despojamento cênico, o Brook adaptador aparentemente quis levar seu trabalho nessa área aos mesmos extremos mas, ao mexer com o texto, acabou perdendo de vista a considerável diferença existente entre despojar e simplesmente empobrecer.

Adaptação concentra ação no personagem principal

É possível que nada faça tanto Shakespeare destacar-se de seus contemporâneos quanto o fato de ele criar suas ações e seus personagens firmemente plantados em um universo sociopolítico sólido, com o qual interagem os personagens e pelo qual são influenciadas as ações; a “adaptação” de Brook consta justamente em cortar todas as informações e todos os aspectos que formam o universo específico da tragédia original de Shakespeare, deixando o que resta (a estrita história da vingança) boiando no espaço, em uma espécie de simplificação da linha de “Reader's Digest” (com a ressalva de que esta última evitaria as inversões de ordem que o espetáculo contém). A encenação desse novo e redutivo texto é realizada em tom que dá a nítida impressão de ter sido pensada para mostrar como Shakespeare é fácil e divertido, em algum projeto de teatro nas escolas: tudo é feito no sentido de a peça inteira ficar concentrada apenas no personagem principal, sem a complexidade e a abrangência da obra do poeta.

O espetáculo começa com o primeiro monólogo de Hamlet. Este fica um tanto difícil de ser apreciado por quem não tiver suficiente intimidade com a peça para se lembrar de todas as informações básicas dadas no total da primeira cena e na metade da segunda, que foram cortadas. A terceira cena (na casa de Polônio) também é cortada, como o início da quarta (os personagens menores já haviam sido eliminados), e logo depois... Não vale a pena continuar a detalhar os cortes; o que podemos chamar de “a historinha” de Hamlet continua a se desenrolar sem noção de passagem de tempo e sem maior atenção ao desenrolar do processo em que está envolvido o personagem principal: o famoso “ser ou não ser” é arbitrariamente jogado para o momento em que Hamlet já está em outro patamar de pensamento e deve ir para a Inglaterra, sendo — não dá para saber por quê — concluído com os versos finais do último monólogo.

Peça termina com fala da primeira cena

É claro que onde não há Dinamarca não há preocupação de Hamlet com o governo de seu país, não há Fortimbras e nem o voto que Hamlet lhe dá ao morrer. A cena final apresenta uma constrangedora solução para as várias mortes: como o diretor quer deixar Hamlet sozinho em cena, a Rainha, o Rei e Laertes são ridiculamente ajudados a sair de cena, quando mortos, andando de costas até a coxia. Acabar a peça com “Boa noite, doce príncipe etc” é corrente, principalmente em versões românticas que querem apenas glorificar o protagonista; mas Brook acrescentou um dos detalhes mais gratuitos que se possa imaginar: Horacio deixa Hamlet morto, avança e dirige-se à platéia para dizer: “Mas vejam, a manhã vestida de vermelho pisa do orvalho daquela colina a leste”, do final da primeira cena da peça. Com muita imaginação e boa vontade, talvez seja possível que esse momento final seja incluído como a promessa de um novo dia, mas como não há referência ao futuro, não se encontra no que acontece efetivamente no palco qualquer razão para isso.

Qualquer coisa que se diga a respeito de “A tragédia de Hamlet”, portanto, não é bem sobre a peça de Shakespeare. Para o espetáculo, a proposta de Brook de que para fazer qualquer dos grandes papéis de Shakespeare é preciso esquecer a assinatura e ler o texto como se fosse uma peça nova é válida e realmente fundamental; mas nesta “Tragédia de Hamlet”, a idéia foi levada a um exagero infeliz — ainda para mostrar o quanto o bardo é bom moço, fácil e simpático, a grande novidade fica sendo o número de ocasiões em que tudo é feito de modo a tirar boas gargalhadas da platéia: até uma boa metade do espetáculo, o tom da comédia é o dominante e para isso se esforçam o reduzido elenco e principalmente o protagonista.

Entre a idéia de encarar o texto como novo e fazer o ator em grande parte responsável por sua interpretação, a direção de Peter Brook opta por uma leitura simples mas sempre voltada para um tom de quem quer explicar tudo para a platéia, talvez por julgá-la incapaz de apreciar o que vê.

Encenação, visualmente, é um prazer

Visualmente, “A tragédia de Hamlet” é um prazer: um grande tapete, algumas almofadas, alguns tapetes menores e figurinos simples, tudo com cores e tecidos da Índia. A atraente música é criada e executada por Antonin Stahly, que também faz o papel de Horácio. O elenco é de oito atores, que fazem dois ou três papéis cada. O protagonista é o ótimo William Nadylam, que, dentro de todas as restrições que têm de ser feitas ao conceito da direção, executa muito bem o que lhe é pedido. Igualmente bom é Emile Abossolo-Mbo, que faz tanto o Fantasma quanto o Rei, e muito bom também é Bruce Meyers, que faz Rosencranz, o primeiro ator e o primeiro coveiro. Sotigui Koyaté, que há alguns anos fez um magistral Próspero na “Tempestade” de Brook em Paris, está muito sacrificado com uma linha ridícula para Polônio (e um pouco melhor em um caricato segundo coveiro). O Horácio de Stahly é simpático e discreto, mas o resto do elenco é mais fraco: Lilo Baur (a Rainha) e Véronique Sacri (Ofélia) são bastante inexpressivas e Rachid Djaïdani é simplesmente muito ruim como Guildenstern e, principalmente, como o segundo ator e Laertes.

Mexer com texto de Shakespeare, conclui-se, é muito difícil até mesmo para um Peter Brook; é uma pena que a visita não seja feita com algum de seus outros e mais bem-sucedidos trabalhos, como a sua fascinante montagem de “A tempestade”. É claro que quando se faz restrições a um espetáculo como esse, elas são feitas a partir de um patamar já muito alto em si.

Jornal O GLOBO - 20 de junho de 2002. Íntegra da crítica de Barbara Heliodora.






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