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5.1.03





Fragmentos de um discurso rigoroso




Entre os ministros que tomaram posse, Gilberto Gil talvez tenha feito o pronunciamento mais contundente e crítico em relação ao governo que saía, assim como foi também o que mais inovou em matéria de reflexão cultural e sociológica.


JOTABÊ MEDEIROS

Mais que seus novíssimos ternos Armani, é o estilo tropicalizante do novo ministro da Cultura que já se sobrepõe à paisagem igual e plana da Esplanada dos Ministérios. Na solenidade de transmissão do cargo, as palavras do cantor baiano ministro de Estado causaram espécie entre os circunstantes - nem tanto por seu conteúdo, mas muito mais pela forma, inusitada para os padrões palacianos.

Gil, no entanto, foi contundente na sua avaliação crítica e mostrou-se mais rigoroso do que foram alguns severos críticos da condução cultural da Era FHC. "O ministério não pode, portanto, ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial", afirmou, sugerindo que sabe que existe uma "clientela preferencial", que a conhece e que ela deverá deixar de ser prioridade na sua gestão. Vai ser fácil medir essa promessa de inversão de prioridades já ao fim do primeiro ano.

Gil também foi duríssimo politicamente com o governo de Fernando Henrique (o qual tinha à sua esquerda um fiel representante, o ministro que saía), mas o "folclórico" (termo que ele condenou em seu discurso) pareceu se sobrepor à política no saldo final. "A pobreza até que diminuiu um pouco, como as estatísticas mostram. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil se tornou um dos países mais desiguais do mundo. Um país que possui talvez a pior distribuição de renda de todo o planeta. E é esse escândalo social que explica, basicamente, o caráter que a violência urbana assumiu recentemente entre nós, subvertendo, inclusive, os antigos valores da bandidagem brasileira."

O discurso ainda antecipou medidas, planos e projetos. "Ao investir nas condições de criação e produção, estaremos tomando uma iniciativa de conseqüências imprevisíveis, mas certamente brilhantes e profundas", afirmou o cantor, anunciando o desejo de retomar a capacidade de investimento direto do Estado no setor.

"As políticas públicas para a cultura devem ser encaradas, também, como intervenções, como estradas reais e vicinais, como caminhos necessários, como atalhos urgentes", considerou o cantor-ministro. Sua própria auto-exigência consta do discurso. "Na verdade, o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso povo, nos mais variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira." Gil parece prometer fazer com que o Estado chegue a esse nível de igualdade.

Moda na gestão Francisco Weffort, a reflexão sobre a "identidade nacional", que gerou diversos livros financiados pelo ministério, também compareceu na apresentação da era Gil. "E o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou dos ritos e da liturgia de uma suposta 'classe artística e intelectual'. Cultura, como alguém já disse, não é apenas 'uma espécie de ignorância que distingue os estudiosos'."

O cantor, além de clamar por uma visão menos burocrática da questão cultural, também prometeu empenhar-se pessoalmente nisso - amparado em sua projeção internacional, seu trânsito fácil e a simpatia notória. "Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance, da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos."

E o baiano também foi à política externa, ao embate com o espectro hegemônico da política internacional. "Sabemos que as guerras são movidas, quase sempre, por interesses econômicos. Mas não só. Elas se desenham, também, nas esferas da intolerância e do fanatismo. E, aqui, o Brasil tem lições a dar - apesar do que querem dizer certos representantes de instituições internacionais e seus porta-vozes internos que, a fim de tentar expiar suas culpas raciais, esforçam-se para nos enquadrar numa moldura de hipocrisia e discórdia, compondo de nossa gente um retrato interessado e interesseiro, capaz de convencer apenas a eles mesmos. Sim: o Brasil tem lições a dar, no campo da paz e em outros, com as suas disposições permanentemente sincréticas e transculturativas. E não vamos abrir mão disso", afirmou, peremptório.

Gil foi original no seu "do-in antropológico", barroco no seu "artefatos ou mentefatos", e também escorregou nos clichês mais batidos da área, como a expressão "não cabe ao Estado fazer cultura".

A questão maior é: sua disposição e demonstrada percepção do pepino cultural serão suficientes para levá-lo adiante ou apenas o colocarão em choque com seus pares do governo? Logo depois de fazer o seu discurso, Gil já tinha reuniões de gabinete com o pessoal do PT para o que seus assessores chamaram de "composição". Será isso a nomeação política de secretarias? Esse procedimento atende aos princípios enumerados na fala do ministro?

Caso seja assim, além do espaço para "aventura e a ousadia, a memória e a invenção", Gil precisará também acomodar o espaço da conveniência política, algo que não estava em seu discurso.


AE/Agencia Estado
O ESTADO DE SÃO PAULO
Sábado 04 de janeiro de 2003.







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