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16.9.03

Pelo Gerald, não pela bunda

16.Set.2003 | Fernanda, a grande Fernanda Montenegro, me telefona para falar de Gerald Thomas, que foi seu diretor, genro e continua seu amigo. Ela propõe que se faça alguma coisa em sua defesa diante dessa absurda situação em que se encontra. Na sexta-feira, 12, o Tribunal de Justiça do Rio aceitou denúncia contra ele. Antes, o Ministério Público lhe propusera um acordo: o processo seria arquivado se ele doasse cinco salários-mínimos a uma instituição de caridade. Gerald recusou porque isso significaria admitir a culpa.

Que culpa? A de ter mostrado a bunda após o espetáculo “Tristão e Isolda” que ele dirigiu no Teatro Municipal do Rio e que foi vaiado e xingado por parte do público. Nem Fernanda nem eu, nem o próprio, já arrependido, pretendemos negar que ele fez uma bobagem. Mas será justo transformar uma falta em crime?! O atentado de Gerald não foi contra a moral e os bons costumes, mas contra os bons modos e o bom gosto; não foi uma agressão moral, mas estética, já que a sua (dele) bunda não merece ser mostrada em público - aliás, nem em privado, mas isso não é problema meu.

Na audiência com o juiz, Gerald disse que não infringiu o artigo 233 do Código Penal, no qual foi enquadrado, argumentando não ter cometido ato obsceno em lugar público. “Não é normal condenar um artista pelo que ele faz no palco. É a castração da liberdade de expressão”. De fato, se é obscenidade passível de condenação mostrar a bunda num recinto fechado como ele fez rapidamente, como devem ser classificadas as cenas que se podem ver na televisão: a câmera passeando vagarosa e detalhadamente por vários recônditos femininos em filmes que são exibidos por certos canais da tv não tão tarde da noite?

Mas na terra da impunidade, em que a preferência nacional é a bunda, mostrada a torto e a direito até para vender o país lá fora, com uma polícia que não dá conta de prender nem a justiça de julgar os verdadeiros criminosos, os de colarinho sujo e os de colarinho branco, Gerald Thomas corre o risco de ser condenado e ir para a cadeia. Como se a Justiça não tivesse mais nada a fazer. Há processo mais ridículo do que esse?

Como somos cheios de cuidados com a nossa imagem lá fora - não gostamos nem de que se fale que aqui tem violência - fico imaginando a repercussão desse incrível caso em países onde Gerald tem o prestígio e a fama de ser um dos maiores encenadores do mundo, como a própria Fernanda já testemunhou ao percorrer cidades européias interpretando uma de suas peças, “The flash and the crash days”. Com 18 óperas encenadas na Europa - Viena, Frankfurt, Munique, Weimar, Copenhague - o criador da Companhia Ópera Seca é uma de nossas glórias culturais. Só não se vê isso com mais nitidez pela rejeição que ele provoca ao se esconder atrás de uma falsa arrogância para se defender de sua fragilidade emocional.

Com o discreto humor que não perde nunca, Fernanda tem uma tese que ajuda a explicar o absurdo do rigor hipócrita que está sendo usado nesse caso do Municipal. Ela acha que é a falta de costume. “Os Estados Unidos têm a tradição de mostrar a bunda em protesto”, explica entre risos. “Contra qualquer coisa, os americanos reagem mostrando o bumbum. Já nós, não temos essa tradição de mostrar. Temos a de dar”. Vai ver que é isso. Gerald, que é espada, errou de tradição.

Para manter o clima de humor, vou terminar citando o poema de Carlos Drummond de
Andrade “A bunda, que engraçada”. Diz assim: “A bunda, que engraçada./Está sempre sorrindo, nunca é trágica(...)/ Não lhe importa o que vai/ pela frente do corpo. A bunda basta-se./Existe algo mais? Talvez os seios,/Ora - murmura a bunda - esses garotos/ainda lhes falta muito que estudar”.

A cultura brasileira faz votos para que a Justiça se inspire em Drummond e trate esse caso ridículo sorrindo, não de forma trágica. Que não se impressione com a parte de trás caída e sem graça do Gerald, mas com a graciosa e divertida bunda dos versos de nosso poeta maior.

no mínimo ZUENIR VENTURA

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