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25.1.03

Figuração inteligente nos anos de chumbo

A propósito da minha aversão aos espetáculos de ópera, tem um fato relacionado, do qual eu gosto de lembrar, apesar de tudo. Anos 1970, AI5 vigorando firme e forte: censura a mil, bombas explodindo dentro dos teatros, censura nos espetáculos e nos textos teatrais, e na TV, aquele micão pela censura ao filme do Ballet Bolshoi, proibido de passar na TVE. Tempo de vacas magérrimas. Sobreviver de teatro nesse País, nunca foi fácil, e especialmente àquela época, era um ensaio diário de malabarismo, saltos, quedas, rolamentos e o delicado equilíbrio na corda bamba que se constitui o exercício da nossa profissão. No palco e na vida real, qualquer descuido poderia ser fatal, com a repressão atenta à vida pessoal dos artistas e às suas performances artísticas. Nesse jôgo de cintura nosso de cada dia, a gente descolava uns cachêzinhos naquilo que aparecesse para fazer no palco -- até figuração em ópera do Teatro Municipal. Fiz algumas, e defendi uma graninha muito bemvinda no chamado anos de chumbo.

Essa minha atuação como figurante inteligente teve o seu comêço quando numa noite, eu estava com uma galera de teatro no Bar Amarelinho, na Cinelândia, e adentrou nesse recinto, um produtor ligado ao Teatro Municipal, procurando jovens atores e atrizes para trabalhar, fazendo figuração inteligente numa ópera com estréia marcada no Teatro Municipal. Eramos todos muito jovens, em início de carreira, com o dinheiro contado para uma água mineral ou um refrigerante e um prato de batatas fritas sendo dividido entre seis ou mais pessoas, era tudo quanto o nosso dinheiro permitia. E é claro que aceitamos, e êsse foi o início de uma longa série de figuração inteligente, isto quer dizer, o ator que não tem texto, e só faz caras e bocas, reagindo às falas dos outros. E em alguns casos, só precisavamos comparecer no dia da estréia para o ensaio geral, e atuar á noite no espetáculo.

Numa dessas apresentações, era uma estréia complicada e o ensaio geral própriamente dito, resumiu-se a uma marcação de luz no palco, entradas e saídas, posicionamentos no palco, mas sem os figurinos e sem as falas e as cantorias. Á noite, na hora do espetáculo, no momento marcado, entramos nós os atores da figuração inteligente, e logo após, o cantor principal -- um ármário de dois metros de altura, que víamos e ouvíamos pela primeira vez na vida. E esse gigante balofo, se encaminha ao centro do palco, estufa o peito imenso, faz uma cara estranha, e solta o vozeirão num estrondo estarrecedor. Aquele gigante com aquele figurino que ele mal cabia dentro, aqueles gestos, falsos, super representados e aquela voz empostada, além de grotesco era muito engraçado. A custo eu segurei o riso, e nem ousei olhar na direção dos meus colegas.

E para completar a nossa tortura, o gigante canta ainda naquele seu estilo prá lá de peculiar, um bom tempo, enquanto surgem outros engraçados personagens cantores super empostados e falsos. E por último, a heroina -- uma loura grandalhona com um figurino ridículo, uma voz esganiçada, soltando um grito muito esquisito, ao mesmo tempo que corre para o gigante, pisa na barra do próprio vestido, quase caindo, mas equilibrou-se a tempo. E nós, ali de figuração inteligente, assistindo aquela cena patética, e sem poder rir. Ao final do espetáculo, depois dos agradecimentos, nunca saimos tão rápido de um palco. Fomos todos nós da figuração inteligente, direto aos camarins para rirmos tudo o que tínhamos direito. Até hoje eu rio quando lembro da cena. No dia seguinte, a mesma comédia. Mas dessa vez foi mais fácil segurar o riso porque já conhecíamos as performances desses estranhos personagens.
Em tempo: não era uma ópera bufa, mas uma ópera romântica e trágica. Não lembro o nome da ópera e nem a proveniência do espetáculo. Enfim, era uma dessas " pérolas " que o Municipal costumava importar do estrangeiro.

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